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(Chico Buarque; , 13 de agosto de 1988) Quando viveu em Roma dos oito aos dez anos de idade, Chico Buarque andou por vias, praças, galerias, lojas, restaurantes, casas, escolas e igrejas que lhe marcaram a memória, tal como descrito em , livro que publicou em 2024. Seu veículo na Itália era a bicicleta. Mas a conexão com o Brasil era a bola de futebol novinha que ele levou e que dizia a todos ser a que fora usada na final da Copa do Mundo de 1950, dada a ele pelo próprio Ghiggia. Mentira, claro. Na verdade, era uma bola arranhada, já sem uns pedaços do couro, pesada e meio murcha, com que ele jogara muitas vezes nos campinhos de poeira ou barro da Vila Russim, do Hospital São Vicente, da Vila Casal, do Caxangá, do São Domingos, do Corte Grande, do Eldorado e do Triângulo. Dizem até que existe uma foto com ele descendo de bicicleta a Rua Nossa Senhora da Saúde carregando-a no braço. Não sei. Eu nunca vi. Quem também morou no exterior (EUA) mais ou menos nessa mesma idade foi Luis Fernando Verissimo, que ontem foi para o céu para ensinar Deus a escrever melhor e por linhas certas, o que poderia ser entendido como resolver o dilema da teodiceia, mas que, para ele, deve ser fazer com que o Internacional seja campeão de tudo todos os anos. Deus talvez ache mais fácil a primeira opção. Verissimo, ao contrário de todo mundo, certamente não experimentou a sensação do " " (o espírito da escada), clássica expressão francesa que Ricardo Araújo Pereira disse ser a que, filosoficamente, melhor define a vida. Trata-se da sensação de que só temos a melhor frase, a melhor resposta, a melhor formulação, quando já estamos de saída (ou "descendo a escada" em direção à rua) da reunião, do evento, da festa, da palestra, da apresentação artística, enfim, das situações em que poderíamos ter proferido a fala mais genial. Verissimo, que quase nada falou ao longo da vida, escreveu tudo o que poderia ter escrito de melhor - o melhor dele e de todos os que se dedicam ao mesmo ofício. Desce a escada sem qualquer sensação de falta. Nós é que ficamos ainda mais sem voz do que antes, uma vez que nossas únicas falas inteligentes e engraçadas são meras reproduções do que Verissimo escrevia. Curioso é que Verissimo criou um personagem para um antigo programa humorístico do Jô Soares que tinha como bordão a expressão "ah, é, é?". Ele só conseguia soltar, alto e repentinamente, respostas sábias e espirituosas em lugares inusitados (ônibus, táxi, andando na rua), muito tempo depois de ter sido provocado numa situação e ter ficado sem fala - só era capaz, na hora do ocorrido, de dizer "ah, é, é?". Mais espírito da escada impossível. Como eu dizia, pode ser que Deus resolva a questão da teodiceia e o mundo passe a ser pleno de bem, paz e harmonia. E que o Internacional, em contrapartida, siga alternando maus e bons momentos como os que tem vivido. Mas um dia, quando o universo e a existência desaparecerem, enfadados pelo tedioso bem geral que terá solapado por tantos milênios a Criação, Deus, no átimo que anteceder o eclipse total, olhará para o acabrunhado Verissimo e pensará que, em lugar de ter erradicado o mal do mundo, deveria ter atendido ao pedido dele relativo ao Inter, por mais difícil que fosse - afinal, tratava-se de pedido do Verissimo, e não de qualquer outro ser humano. Mas aí será tarde, porque Ele, de novo onisciente, verá que já estará descendo a escada. Eu fiquei tentando bolar um final aproximando Chico Buarque e Verissimo, e usando o espírito da escada para os jogos de futebol, sobretudo as peladas, depois das quais perdemos o sono com os lances errados, e Itália e Estados Unidos e Deus e tudo o mais. Não consegui. Talvez só me ocorra algo interessante depois que este texto for publicado. Por enquanto, provocado pela ideia, só balbucio "ah, é, é?". _________________________________